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O lar São Vicente de Paulo 

Cuide de quem cuidou de você

     Cerca de 500 quilômetros separam Frederico Westphalen, município do norte gaúcho, da capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Mas a distância física dos grandes centros urbanos do país não é suficiente para fazer da cidade um lugar que não enfrente problemas semelhantes aos que o Brasil encara com o envelhecimento da população. Na verdade, toda a região onde se situa o município é formada por minúsculas cidades, cujos comércios ganham fôlego toda vez que o dinheiro da aposentadoria cai nas contas dos idosos. Nesses confins, a terceira idade é público-alvo.

     Talvez “asilo” seja um termo desgastado demais para definir o que hoje geralmente se chama “casa de acolhimento”. Em FW, optaram simplesmente por “lar”. A religiosidade do povo local também contribuiu para que o espaço ganhasse um nome próprio, denominação pela qual hoje se faz conhecer em toda a região. A história da fundação do Lar São Vicente de Paulo por si só já justifica a fama do local. Há “mais ou menos 30 anos”, como se esforça para recordar a administradora da casa, Azélia Damo, de 80 anos, o casal de comerciantes Antonio e Elis Ruaro se deparou com uma cena chocante o suficiente para mobilizar os empresários. Em uma visita no interior do município, encontraram um casal de idosos, sozinhos, dormindo sonos profundos sobre amontoados de palhas de milho localizados em um galpão.

     Verdade ou não, o mito de fundação do Lar dos Idosos São Vicente de Paulo é contado com rigidez por Azélia, que não permite muitos questionamentos sobre a história. Ela prefere, na verdade, focar o conto no presente, como quem tenta superar o passado atropelando as histórias, assim como fez quando questionada sobre sua idade. Ter de percorrer as décadas passadas para somar os anos pareceu muito difícil para Azélia.

— Eu tenho . . . eu sou de 20 de novembro de 1940

        A memória octogenária de Azélia falha também na idade do lar. Os 30 anos da casa são cinco a menos do que a data oficial de fundação, registrada em uma placa na entrada do lar. Tentaram corrigir o equívoco de Azélia na entrevista, mas não houve muito espaço para negociação.

    Mas cinco anos a mais ou a menos pouco importam quando se trata da missão do Lar São Vicente de Paulo, única instituição que acolhe idosos em FW. Hoje, cerca de 50 ocupam o ambiente, construído no mesmo local onde Elis e Antonio decidiram edificar um pequeno cômodo, em 1984, para receber o casal que dormia entre o teto do galpão e o colchão de palha.

   Hoje, o funcionamento segue muito parecido com o original, com o adicional de uma taxa. É necessário pagar para viver no lar, mas o custo é baixo. Para garantir a presença de um idoso na casa, a família interessada precisa entregar o cartão da aposentadoria do candidato para o lar, que fica com dois salários mínimos, cerca de R$ 1.996. O valor é destinado para o custeio de todas as despesas do “vovô” ou da “vovó” no local.

    Além do requisito financeiro, são raros os casos que a administração permitiu que pessoas com menos de 60 anos ingressassem como assistidos da casa.

– Aqui a gente tem alguns requisitos: tem que ter 60 anos ou mais e estar se defendendo, entrar no lar caminhando”. Daí pra frente a gente arca com as consequências – lembra dona Azélia, sem deixar de citar que eventualmente a direção precisa negar a entrada de idosos, em função do baixo contingente de funcionários e da estrutura física da casa.

– E o Marcelo? – questionamos, sobre um dos atendidos pelo lar que tem menos de 30 anos.

– O Marcelo é caso especial, por que ele é deficiente, o pai dele veio ficar aqui. Não dava pra deixar ele sozinho e aí foi a única vez que entrou um mais novo. Ali foi uma caridade que fizemos –, completou dona Azélia.

     A preocupação de Azélia é um reflexo das instruções de dona Elis, a proprietária do lar desde a morte do marido Antonio, ocorrida há alguns anos. “Apertar o cinto” das finanças é uma das diretrizes, principalmente porque muitos dos idosos do lar ingressaram na casa quando valor exigido era de um salário mínimo. Hoje, eles continuam pagando o mesmo montante, e a conta nem sempre é sustentável.

    A própria trajetória de dona Azélia no lar ajuda a entender as razões da preocupação dela com as contas da instituição. Seu vínculo na casa ultrapassa os trinta anos, período em que ela fez de tudo um pouco por lá.

– Como você começou a trabalhar aqui? – perguntamos.

– Foi um chamado de Deus –, interveio, em tom descontraído, a enfermeira-chefe do lar, Elsa Maria Rodrigues, 58 anos, que acompanhava a entrevista ao lado.

– Sei lá – respondeu dona Azélia à brincadeira da enfermeira – eu estava aposentada e tinha a fama de cozinhar muito bem, sempre gostei. Aí faltou cozinheira aqui e me chamaram para ficar dois meses. Eu vim, mas não queria, e quando terminou os dois meses eles vieram e me falaram “olha Azélia, você está na diretoria agora e não tem mais como sair”. Tô aqui até hoje.

     Também idosa, dona Azélia disse que gostaria de sair do lar, ficar em casa e descansar. Ao longo dos quase dois meses de visitas da equipe de reportagem à casa, a presença da administradora diminuiu, até que nas últimas semanas fomos comunicados que ela apresentou problemas de saúde e acabou afastada das atividades, abrindo espaço para que uma nova administradora assumisse o posto.

Afeto que falta e afeta 

     A presença de Elsa ao lado de Azélia durante a entrevista representa a função que a enfermeira-chefe do lar cumpre. Absolutamente tudo o que ocorre na casa de acolhimento passa pela profissional. Há 13 anos no lar, Elsa gerencia desde a distribuição dos medicamentos até as refeições servidas pela cozinha.

     É Elsa quem se aproxima com mais facilidade dos idosos, e também quem impõe mais respeito entre os acolhidos, ao contrário de Azélia, que era mais temida do que respeitada. A relação familiar com que Elsa conduz sua rotina talvez seja o trunfo para que ela seja aceita ao mesmo tempo como filha e mãe de praticamente todos casa. A confiança da direção em seu trabalho também garantem a ela o direito de “peitar” decisões administrativas:

- Aqui tem aquela norma que vocês escutaram: para entrar no lar precisa vir caminhando. Tem um caso de um senhor que chegou aqui faz uma semana e meia, e ele não consegue fazer nada. A direção disse que se ele desse muito trabalho era pra mandar ele de volta, mas a gente se apega, eu não vou deixar ele ir embora. Me dói o coração de mandar de volta e você pode vir daqui um ano de novo que se ele não tiver falecido ele vai estar aqui, eu não vou mandar embora.

   A vivência diária e intensa com quem Elsa chama carinhosamente de “nonos” - termo equivalente a “avôs” em boa parte das colônias italianas no Rio Grande do Sul - gerou um complexo relatório de informações sobre cada um dos acolhidos no lar. Em um breve passeio pelos corredores, quartos e salas, ela levanta o histórico de todos com quem vai conversando.

— Essa aqui deve ter uns 100 anos — disse a enfermeira, apontando para Juraci Arruda, idosa de pouco mais de 1,5m de altura, deficiente auditiva e a mais simpática moradora do lar.

    Poucos metros adiante, ainda no saguão central, para onde os avós vão depois do café de manhã e onde passam o dia procurando algum entretenimento do lado de fora das dezenas de vidraças da sala até a hora de retornarem para as camas, a enfermeira seguiu com a descrição:

— Essa aqui teve um derrame, ficou meio dia abandonada dentro de uma casa e perdeu os movimentos do lado esquerdo - falou, sobre Raquel Vitalli, de 73 anos, que vê as horas se esgotarem deitada em uma grande poltrona, apenas com o tronco um pouco mais elevado, para que possa conversar com os visitantes.

    Essa palavra, na verdade, é a raiz das relações no lar. Visitantes. Menos da metade dos idosos recebe familiares ou amigos. Isso porque a maior parte dos nonos são abandonados. Segundo Elsa, muitos chegam com sérios problemas de saúde, principalmente demência, e os familiares já não fazem mais questão de tê-los em casa:

Juraci Arruda, a "Mudinha", se comunica através de expressões corporais

     

Tem mais da metade que abandona. Tem uns que até trocam o número de celular, pra gente não conseguir ligar, procurar. Esses dias a  gente ligou para uma e ela disse ‘eu nem moro mais em FW, to morando em Florianópolis’. Aí tu vai dizer o que? Deixou aqui e foi embora…

     A falta de afeto se traduz em diferentes reações entre os nonos. Alguns se tornam agressivos, reagem com violência às tentativas das técnicas de enfermagem os levarem para o banheiro, por exemplo. Outros mergulham num silêncio eterno, uma angústia que se traveste de antipatia, raiva com o pouco de vida que lhe resta. O contraponto da crueldade são as benfeitorias da comunidade regional, que preenche o vazio das visitas dos familiares com seguidas festas e ações no lar.

     Há, ainda, casos raros, como e Doralice Martins, 84 anos, dona de um sorriso acolhedor, uma conversa em tom de voz baixo e um alto astral raro de se ver em seus colegas de casa:

De onde você é, vó? — perguntamos, atraídos pelo olhar simpático.

— Sou de Taquari — disse ela, citando o município gaúcho de quase 30 mil habitantes, situado perto de Montenegro.

— Sempre morou lá?

— Eu me mudei pra Seberi com 12 anos, onde conheci meu marido. Depois fui com ele para São Miguel do Oeste, em Santa Catarina. Meu irmão, Sandoval, ainda mora em Seberi, corta cabelos lá. Conhece ele? — indagou.

— Não, não. A gente não é daqui vó. Como você chegou aqui no lar? — perguntamos, um tanto envergonhados por não conheceremos Sandoval e não darmos continuidade no assunto.

Depois que meu 'véio' morreu eu fiquei sozinha em São Miguel. A minha sobrinha, que é assistente social aqui em Frederico, foi me visitar e disse pra eu vir aqui. Eu tinha minha casinha, fazia minha comidinha, não tava sofrendo. Fazia mate na hora que eu queria, tinha uma vizinha que sempre vinha me trazer bolacha de manhã cedo e a gente ficava tomando mate. Mas aí me trouxeram pra cá. Vim que nem um gato num saco — contou ela, rindo como quem tenta fazer piada com um destino que não queria ter seguido.

Você queria ter ficado lá? - insistimos

Sim, mas aqui tá bem bom. Graças a Deus tem bastante gente aqui, eu gosto. Acordo, tomo meu banho, um café e venho pro salão. Fico aqui o dia todo.

     A mesmice da rotina relatada pela simpática avó, que outrora trabalhara cuidando de idosos em um hospital de São Miguel do Oeste, é justificada por Doralice com o bom-humor de quem se convenceu de como viverá os próximos e últimos anos de sua vida:

— A gente fica aqui no salão o dia todo. A gente se 'enterte' tomando mate e também olhando de longe as visitas dos outros quando elas vêm. A 'véia' tá tirando férias agora - brincou, antes de começar a detalhar as outras funções que exerceu ao longo de mais de oito décadas.

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