Os segredos da felicidade
O cheiro do almoço já se espalha na casa, animando Seu José. Natural de Caiçara, município distante 15 minutos de Frederico Westphalen, ele percorre todos os cômodos do asilo, tem liberdade, confiança e autonomia para isso, e também pega no sono fácil, em qualquer lugar do lar. Mas é de se agitar que Seu José mais gosta, reflexo de uma vida ativa, esportiva, que teve antes de entrar na casa de acolhimento. Em solo caiçarense, ele foi treinador de futebol de algumas equipes amadoras, e mantém viva a paixão pelo esporte com o rádio que guarda ao lado de sua cama, no qual ouve diariamente as principais emissoras especialistas em futebol no Rio Grande do Sul. Vale lembrar os desavisados que, aqueles que desejarem falar sobre futebol com Seu José meramente para levantar um assunto, precisam estar cientes de que será necessário conhecimento no mínimo razoável para ter uma conversa sobre o tema com o porteiro, que embasa suas ideias em argumentações táticas, artilheiros, recentes rumores de transferência, erros dos treinadores e novas promessas do futebol.
Em verdade, são as atividades corporais que arrancam sorrisos de Seu José. Cantar é um de seus prazeres, e ele dificilmente não se torna um dos cantores dos tantos grupos da comunidade que frequentemente visitam o lar, carregando consigo violões e, claro, gaitas, o instrumento favorito do porteiro. É evidente que ele não reclamaria de festas, então dançar, cantar e tocar são distrações que tornam José feliz. Mas não apenas elas:
- Qual é o segredo para ser feliz, Seu José? - perguntamos para ele, que estava em um banco na frente do quarto.
- Ah, o segredo é dançar, tocar gaita e cantar e…, e… - hesitou ele, antes de projetar seu tronco em nossa direção e diminuir o tom de voz para, sussurrando, confessar - … e fazer sexo.
Em respeito ao tom sigiloso com que ele parecia confidenciar um crime, mantivemos o mesmo volume de voz e retrucamos:
- Sexo, Seu José? Mas e dá pra fazer aqui?
- Não, aqui não dá, não pode. Mas eu tenho uma lá fora [do lar] e vejo ela a cada 15 dias. Eles [amigos conhecidos] vêm me buscar e eu vou ver ela e comer churrasco sempre.
José Sadi, 67, é um dos membros mais ativos e espontâneos do local
O comportamento natural que Seu José sussurra ao contar é um exemplo da necessidade que também os idosos possuem de realizarem atividades físicas. Cada qual com suas preferências, mas o importante é manter a vida ativa. É nesse sentido que atuam as estagiárias do curso de Fisioterapia da URI/FW no lar, através de uma parceria entre a universidade e o asilo, que oficialmente é classificado como instituição de longa permanência para idosos (ILPI) pelas profissionais e estudantes da área da saúde.
Desde março de 2019, os grupo vai com frequência ao lar, onde possui uma sala equipada especialmente para a realização de atividade fisioterapêuticas. Conforme a preceptora do grupo de estagiárias, a fisioterapeuta Marciane Marcolan de Souza, não somente as atividades físicas fazem parte do projeto, que visa aumentar a qualidade de vida dos acolhidos através do estímulo à interação:
- Sempre foi preconizada a interação e socialização entre eles, através de atividades em grupo. Assim sendo, notou-se uma melhora dos pacientes como um todo, e não somente o “físico e motor”, melhorando sem dúvidas a qualidade de vida dos pacientes ali institucionalizados - afirmou a profissional.
Envelhecimento saudável, aumento e manutenção da força muscular, melhora nas capacidades de equilíbrio e mobilidade e independência nas atividades diárias são os principais focos do projeto. A boa relação das estagiárias com os idosos, que percebem as melhoras em suas vidas, motivou inclusive um pedido natalino de Raquel. Como sequela do derrame que teve, ela ficou com uma das mãos fortemente fechada, cujos dedos praticamente não se moviam. O lento mas produtivo trabalho de fisioterapia contribuiu para a flexibilização da palma da mão e, numa campanha natalina realizada com os idosos, Raquel pediu um fisioterapeuta só para ela, que ficasse do seu lado diariamente, inteiramente a seu dispôr.
Maturidade Ativa
Fora do pátio do Lar São Vicente de Paulo, outros idosos seguem a jornada tentando, por si próprios, soluções que evitem a perda de mobilidade, o enfraquecimento dos ossos e a diminuição da qualidade de vida. E é no Sesc que muitos acabam encontrando um lugar capacitado para receber os mais velhos e incentivar a prática da atividade física. Fundado em FW em maio de 2007, o programa Maturidade Ativa realiza diversas atividades em prol do envelhecimento saudável, como danças, câmbio - uma espécie de adaptação do voleibol, coral, jogos de mesa, bocha e oficinas de artesanato, além da promoção de palestras e campanhas de ação social.
Uma das fundadora do grupo é Elaine Ritter, de 55 anos, que tem a companhia do marido Paulo Roberto Ritter, de 58, em todas as atividades do projeto. A disciplina do casal em comparecer aos encontros pode ter sido crucial para a vida de Paulo, que sofreu com problemas respiratórios e teve de fazer uma cirurgia para troca de válvula no coração. Segundo ele, o programa tem contribuído para a melhora das funções cardíacas.
No Rio Grande do Sul, existem 80 grupos do Maturidade Ativa em funcionamento, distribuídos em 70 municípios gaúchos, que beneficiam cerca de seis mil pessoas com as diversas ações integradas.
Passado desintegrado
Além do trabalho fisioterapêutico, da ação da nutricionista, da vigilância e coordenação da enfermeira Elsa, o lar conta também com o amparo da equipe de saúde pública do município. Um dos médicos do posto de saúde, por exemplo, sempre que necessário comparece à casa para realizar consultas. Uma assistente social, técnicas em enfermagem, como Fernanda Caxambu, de 33 anos, e Orildes Brandalise, de 49, além de auxiliares de serviços gerais, como Marilene Scheffer, de 42 anos, ajudam a formar a rede de amparo aos acolhidos.
Mesmo com tanta força de trabalho reunida, as marcas do tempo agem impiedosamente em muitos nonos. Elsa, que diariamente avalia os acolhidos e prepara os coquetéis de remédios individuais, não possui dúvidas sobre as principais doenças que afetam os idosos:
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- As famílias geralmente colocam os nonos aqui com mais de 88 anos. A maioria tem 90 anos, então eles já chegam aqui bem debilitados. Os principais problemas são a demência, depois o Parkinson, a diabetes e a hipertensão.
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É fácil visualizar o cenário descrito por Elsa. No lar, manter um diálogo conexo com alguém por algum tempo é realmente difícil em função dos problemas mentais dos acolhidos, como o próprio Alzheimer. Vidas e histórias se perdem e morrem antes da própria pessoa, com direito a um velório lento, assistido, e irreparável. Olhares vazios, perdidos, que denunciam o oco cognitivo escancaram a fragilidade humana diante de problemas randômicos, aos quais todos estão e estarão sujeitos.
Aconteceu de maneira bruta com uma senhora adepta da sala de televisão. Não lembra seu nome, da profissão que exercera e nem do marido. Até tenta contar nos dedos o número de filhos, mas no meio do processo se depara com as mãos abertas diante de seus olhos sem lembrar por qual motivo seus dedos estão esticados em sua frente. Desiste, mesmo sem saber do que, e regressa ao estado neutro, olhando para o nada, pensando em nada.
Pode ocorrer também o mesmo que se passa com Dona Francisca, personagem icônica da sala de televisão. Sempre sentada perto de uma das portas do ambiente, ela chama atenção de qualquer um que passa por ali. Em seus braços devem repousar mais de 30 pulseiras, de todas as cores e tamanhos. Um óculos grande e espelhado transmite a ideia de que ela pode vigiar todos sem que ninguém perceba, ao mesmo tempo que contribui para a adornar o rosto, cujas bochechas diariamente são coloridas de rosa com algum tipo de maquiagem ultra resistente ou até mesmo batom. Os dois dentes de ouro encerram a harmonização facial, e convidam para uma conversa, mas a incapacidade de Dona Francisca se fazer entender com sua fala rápida, enrolada e desconexa não dá pistas sobre a origem de tanta preocupação com a aparência. A única informação claramente ouvida, e por ela repetida em várias visitas, é de que está no lar há 12 anos, pois entrou com 100 e hoje está com 112. Há controvérsias, mas ninguém ousa discutir.
O cuidado na prática
Se Elsa é quem monitora, orienta e coordena o trabalho no lar, são funcionárias como Fernanda, Orildes e Marilene que fazem diariamente o trabalho braçal. A enfermeira ajuda nisso também, mas é função das técnicas em enfermagem e auxiliares de serviços gerais dar banho nos avós, ajudar a vestir, levar ao banheiro, varrer e lavar o chão da casa.
Natural de Caiçara, Orildes trabalha há 30 anos no Lar São Vicente de Paulo. Enquanto prepara a mangueira para lavar a calçada que dá acesso à porta da casa, é fácil perceber o desejo que a técnica em enfermagem tem em contar um pouco de sua história, seu passado e seus planos para o futuro. Qualquer pergunta rende uma resposta rica:
- Como você começou a trabalhar aqui?
- Comecei com 19 anos. Eu sempre gostei mais dos idosos. Minhas amigas quando eu era nova eram sempre as mais velhas, as senhoras, gostava de ficar com elas. Daí comecei aqui por causa de uma promessa, mas acho que agora vou sair - disse ela, como quem convida para mais uma pergunta.
Confusos entre a curiosidade em saber sobre a promessa e o desejo de abandonar o lar, tivemos de optar por uma dúvida antes da outra:
- Qual promessa? - perguntamos.
- Não posso contar - respondeu, evidenciando que erramos na seleção da ordem das questões.
- E por quê vai sair? - tentamos.
- Eu sempre saio no final do ano, para as férias, e volto depois. Mas dessa vez acho que não vou voltar. Ainda não sei se saio ou não, mas quero descansar um pouco, fazer outras coisas, não sei exatamente o que.
A indecisão sobre tudo deixa dúvidas sobre o que realmente se passava na cabeça da técnica em enfermagem com especialização em geriatria, mas que gostava mais de lavar as calçadas. Mais tarde, com algum tempo de conversa, pouco a pouco ela foi esclarecendo os projetos e desvendando seu passado. Tem cinco filhos, teve de superar um câncer de mama há 25 anos, e possui um plano para os próximos meses, ideia que a família não pode saber. Depois de ir até Chapecó, a principal cidade catarinense na divisa com o norte do RS, Orildes caminhava pelas ruas sob um forte calor, e não encontrava local nenhum para poder matar sua sede, nem um vendedor de água. Eis a ideia: empreender em Chapecó. Em segredo, ela deseja comprar uma certa quantidade de água e sair vendendo pelas ruas da cidade catarinense. Ela admite que será apenas uma experiência, um teste, mas se der certo, pode considerar mudar drasticamente de profissão.
Já Fernanda, também técnica em enfermagem, ingressara no lar há pouco mais de um mês no momento da conversa rápida que tivemos enquanto ela também lavava calçadas, do outro lado da casa, perto da sala de fisioterapia. Sexta-feira, aliás, é o dia de fazer a barba dos vovôs e lavar calçadas.
Ao contrário de Orildes, Fernanda é mais direta nas respostas:
- Gosta de trabalhar aqui?
- Gosto.
- Como é trabalhar com os idosos?
- Tem dias que eles tão bem, tem dias que tão brabo.
- Qual é o segredo para lidar com isso?
- Paciência.
- Qual é o seu serviço com eles aqui?
- Ah, dar banho, cuidar os nonos e ajudar o pessoal da cozinha.
Na cozinha, a comida já estava quase pronta. Letícia Oma ensinava a nova funcionária, Marilene, sobre o funcionamento do ambiente e as quantidades de alimentos necessárias. A novata chegara no dia anterior ao lar, depois de entregar currículo para a administração. Antes, era cuidadora particular em Vicente Dutra, distante 50 minutos de FW, mas o pouco período no novo emprego já fora suficiente para notar as diferenças:
- Lá eu cuidava da mãe do prefeito. Era eu e uma outra mulher que cuidava dela. Mas a vó incomodava mais do que 10 aqui do lar. Lá eu já fazia comida também, cozinhava para nove, ia a família inteira almoçar lá na casa.
As recentes chegadas de Marilene e de Fernanda além da iminente saída de Orildes são indícios das dificuldades que o lar têm com a questão profissional. A mão de obra é rara, e está difícil encontrar cuidadores ou técnicas em enfermagem que desejem trabalhar em ILPIs. O salário da equipe não foi revelado, mas Elsa acredita que o problema não seja tanto o dinheiro quanto as condições do serviço:
- Tem bastante cuidadores particulares. Hoje tá bastante difícil arrumar essas pessoas aqui para o lar. Se elas tem um segundo grau [ensino médio completo] já vão para balconista de uma loja, trabalhar em outra coisa, não aqui.
- Mas por quê elas não vêm aqui? - insistimos.
- Me desculpe a palavra mas quem que gosta de ficar o tempo todo assim, limpando um bumbum, a sujeira de alguém que vomita no chão? Numa loja é bem diferente - constatou.
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Enfermeira Elsa é quem chefia as atividades de enfermagem do lar
A reflexão de Elsa escancara a fragilidade de um sistema preterido pelos jovens trabalhadores mas também pelas políticas públicas. Pouco se vê, se fala e se ouve sobre projetos de governo que contemplem e amparem instituições como o Lar São Vicente de Paulo. Por hora, os lares particulares dão conta de receber idosos até certo ponto financeiramente carentes, mas ainda assim uma parcela significativa segue dormindo sob tetos empoeirados, em cima de palhas de milho. Mesmo que as reclamações sejam recorrentes entre os institucionalizados, muitas delas justificadas pela chegada da própria velhice, lares como o São Vicente de Paulo oferecem dignidade razoável, mas um fim de vida romantizado, em casas confortáveis e com atendimento particular, é exclusividade para aqueles que podem dispender muito mais de dois salários mínimos por mês.
Se o conforto não é a principal virtude do Lar São Vicente de Paulo, o equilíbrio que leva alegria e sorrisos aos nonos é sustentado pelo amor com que profissionais como Elsa levam a rotina. Para ela, assim como para tantos outros que atuam lá, o lar não é trabalho, é família, é laço afetivo, é tristeza quando um amigo - e não um cliente - vai ao hospital sem previsão de retorno, e alegria quando a casa de saúde telefona avisando que ele pode retornar ao lar.
Talvez seja um futuro para o qual nem todo mundo está preparado, ou para onde nem todos gostariam de ir, mas certamente é a única via de carinho à qual uma parcela significativa à população tem e terá acesso antes do eterno fechar dos olhos. Na linha espiral da vida, os lares são o reencontro com o amor maternal, o retorno a uma maternidade diferente, onde não vão as pessoas que vieram à luz, mas sim aquelas que vão ao encontro dela.