A Rotina
Pouco depois dos relógios marcarem 5 horas da manhã, as técnicas de enfermagem e auxiliares de serviços gerais começam a acordar os avós e levam eles para a primeira atividade do dia: o banho. Alguns não precisam de ajuda para o rito matinal, como José Sadi de Vargas, de 67 anos, que se orgulha em ser o porteiro do Lar São Vicente de Paulo. Assim que levanta, José aguarda o primeiro toque da campainha, que geralmente anuncia a chegada de Letícia Oma, 58 anos, a cozinheira oficial do asilo há sete anos.
Enquanto Seu José se arruma procurando uma das cinco ou seis camisas de times de futebol que encontra em seu armário, grande parte dos demais idosos termina de se ajeitar e começa a se deslocar para o refeitório. Para o desjejum, primeiro vão os avós que precisam de ajuda para se alimentar, como aqueles que usam sonda nasogástrica ou os que têm as mãos amarradas junto ao corpo por sofrerem de tantas doenças que são capazes até de mastigarem as próprias fraldas.
O contraste entre a saúde e a doença é uma das características mais marcantes no lar
Os mais autônomos vêm depois. E eles se dividem dentro do refeitório, seguindo as normas de Elsa e as instruções da nutricionista do lar, Ana Clara Bertoletti, de 24 anos, que há 11 meses é responsável por montar os cardápios, realizar análises individuais da nutrição dos nonos e gerenciar as questões operacionais da cozinha, como controle de estoque e regras de higienização.
No saguão de alimentação, de um lado ficam os nonos cuja dieta permite um cardápio mais variado. Em outro lado, numa mesa, ficam os diabéticos, que tiveram de ser afastados do restante por tentarem trocar copos de suco sem açúcar com aqueles adocicados, servidos para os demais que não têm restrições na dieta.
Nas sombras da Velhice
Assim que termina a refeição matinal, o grupo de cerca de 50 idosos se reparte em dois. Um deles, formado somente por mulheres, fica em um cômodo reservado, próximo da enfermaria, num ambiente parcamente iluminado, cuja principal fonte de luz tem origem em um dos cantos da sala, onde fica uma grande televisão de tubo, já condenada à morte com a chegada da tecnologia do sinal digital. Aparentemente, ali ninguém se importa com mudanças que ocorrerão nos próximos cinco anos, mas sim com os sons cômicos emitidos pelo papagaio Louro José, no programa Mais Você.
As senhoras ali pouco conversam, e cruzar esta sala sem se sentir radiografado pela curiosidade das avós ao verem novas pessoas no lar é impossível. Cumprimentar elas talvez não surta efeito, já que as que conseguirem escutar o “bom dia” dificilmente responderão, mas isso nem de longe significa falta de respeito.
Pelo menos três cuias de chimarrão se revezam nos três ou quatro grupos de mulheres que se formam ao redor da televisão. Elas não conversam muito, mas proferem frases incompreensíveis para si mesmas, baixinho. Entre as poucas com as quais é possível ter uma conversa com trocas de frases lógicas por algum tempo estão Eva Rodrigues, de 76 anos, e Odila Pazuch, de 86 anos. Sentadas uma ao lado da outra, elas demonstram interesse no principal assunto do dia, a chegada de uma boneca ao lar, destinada para uma das inquilinas.
A semelhança do brinquedo com um bebê assusta mas, enquanto um dos outros grupos fica acariciando o exemplar, beijando e até embalando cuidadosamente em um carrinho de boneca, Eva e Odila olham de longe e riem da cena, advertindo sobre o comportamento explosivo da dona da boneca, uma indígena deficiente auditiva:
- Essa daí é braba. Briga com todo mundo, dá tapa, é ruim - diz Eva, com feição de reprovação, ancorada em argumentos semelhante ditos pela amiga Odila.
Por sua vez, Odila, que diz ter ingressado no lar em 2002, e se locomove pela casa usando uma cadeira de plástico como andador, está mais interessada em reafirmar constantemente suas raízes, como quem tenta reviver o passado:
- Eu nasci na roça, me criei na colônia. Gosto daqui sim, estou aqui desde 2002, mas me criei na roça, na colônia, sou colona, sempre fui agricultora, da colônia mesmo - repete Odila, sempre de olhos fechados, e cujas frases não têm prosseguimento na mesma língua, já que a agricultora emenda falas em português com longos monólogos no dialeto talian.
Enquanto isso, Eva segue conspirando sobre a raiva generalizada que toma conta das pessoas no lar:
- E as enfermeiras são legais aqui vó? - perguntamos.
- Não são, não, são bem brabas, xingam a gente - disse, em tom de voz baixo, entre um gole e outro de chimarrão.
- E a Dona Azélia, como ela era? - questionamos.
- Vocês conhecem a Azélia? - respondeu Eva, surpresa.
- Sim, ela era a administradora aqui né? Você gostava dela? - falamos.
- Era ela sim - disse, já com o rosto sério. - Mas ela era braba, xingava bastante.
- Mas a nova “chefa” é mais querida então? - insistimos.
- Não, ela é braba também, sempre passa braba aqui - repetiu.
Dona Eva Rodrigues expressa em seu semblante a incorfomidade da
vivência no lar
A sala dos espelhos
Do lado de fora dessa sala, fica a outra metade dos avós. Entre os corredores que levam aos quartos dos nonos fica o chamado “saguão”, espaço lotado de sofás e poltronas e cercado por vidraças que fazem entrar a luz solar no ambiente. Sob um piso vermelho e paredes pintadas com monótonos tons pasteis de amarelo, os idosos passam aqui maior parte do dia, cada um em seus lugares. A maioria são homens, mas quase todos possuem sérios problemas cognitivos e motores, e sequer conseguem responder aos cumprimentos dos visitantes.
Ao fundo desse espaço fica Raquel, deitada em sua poltrona e coberta com edredons ou mantas, dependendo da estação do ano. Ao seu lado, uma outra televisão arcaica fica como peça decorativa, pois não funciona, mas Raquel demonstra mais interesse nas ondas do rádio que fica ao seu lado do que nas graças do Louro José.
Escutar tantas emissoras fez de Raquel uma ouvinte seletiva. Seria de imaginar que ela escutasse uma das rádios mais tradicionais da região, a Luz e Alegria, de Frederico Westphalen, mas ao ser questionada sobre a emissora favorita, ela acabou revelando mais do que simplesmente programa que mais gosta.
- Eu escuto só a Barril [FM]. Gosto do programa Papo de Jacaré - diz ela, sobre a produção que vai ao ar todo meio-dia. - A Luz e Alegria a gente não escuta. Tem muita nota de falecimento.
"
"
Raquel Vitalli e seu fiel companheiro do dia a dia, o rádio
Quem gosta de se atualizar com o noticiário é Conceição Brandoli, de 75 anos. Cega de um olho em função de um derrame que sofreu enquanto tomava banho numa manhã, ela é adepta da “sala de vidro”, e geralmente senta perto de alguém que possua tempo livre o suficiente para que ela possa contar e repetir todas as histórias que lembra.
Ao confirmar com os visitantes as informações, geralmente as tragédias, que escuta no rádio, ela não perde tempo para iniciar os contos sobre sua vida, que se confundem com a história de Frederico Westphalen. Mas, antes disso, um adendo sobre a qualidade do chimarrão que ela sorve durante a prosa.
- Hoje em dia não se faz mais erva-mate como antigamente. Olha, meu pai fazia erva de verdade, mas isso era antigamente. Esses dias encontraram numa empresa em Palmeira [das Missões, cidade próxima de FW] um monte de coisa que misturavam na erva. Acharam rinso [sabão em pó], detergente e folha de abacateiro na erva! Claro, daí faz mais espuma e mais peso no pacote - disse, indignada, com a cuia mão.
Natural de Soledade, Conceição diz ter chego em FW justamente no dia do enterro do monsenhor Vitor Battistella, o padre mais famoso da história da cidade, fundador da Catedral Santo Antônio, símbolo do município, e criador de várias instituições, incluindo a emissora preterida por Raquel, a rádio Luz e Alegria.
Filha de fazendeiros, ela perdeu a mãe quando ainda era criança, e veio morar em FW com um tio, com quem trabalhou por 12 anos em um hotel da cidade. Entre as personalidades que ela conheceu quando mais jovem estava o então empresário Antonio Ruaro, o fundador do lar que a acolheu. É ao “seu Antonio” a que Conceição atribui a história que explica o nome da cidade de Frederico Westphalen:
Conceição, 75, passa seu tempo conversando e contando histórias sobre o passado
- Sabe porquê o nome da cidade é Frederico Westphalen? - perguntou à reportagem.
- Não sabemos - falamos, mesmo cientes de que a versão oficial diz que esse era o nome do engenheiro que construiu a rodovia ligando Palmeira das Missões e Iraí, estrada que acabou originando o povoado inicialmente chamado de “Barril”, e que finalmente levaria o nome do profissional:
- Então vou contar para vocês. Essa história é real, era o seu Antonio Ruaro que falava e jurava - disse ela.
"
Os primeiros moradores daqui formavam um casal. Ele se chamava Frederico. Um dia eles estavam almoçando e ele se engasgou, não conseguia engolir. Daí ela levantou, deu a volta na mesa e começou a bater nas costas do marido, que não conseguia respirar direito. Ela dizia para ele, despesperada ‘Frederico, vê se fale, Frederico vê se fale, vê se fale’, e foi assim que ficou, Frederico ‘Vêsefale’- concluiu ela, sem esboçar qualquer tipo de risada ou sinal de que se tratasse de uma anedota.
"
A discórdia passageira
Logo ao lado de Conceição estava Doralice, a mesma do sorriso simpático que chegou ao Lar como “um gato num saco”. Enquanto ela calmamente recitava detalhes de uma infância desfrutada junto de um pai amoroso, numa época em que se esquentava água sobre as chamas do ‘fogo de chão’, a divagação saudosista de Doralice foi interrompida por uma discussão que se iniciou em um dos sofás das proximidades. Duas senhoras tomavam o chimarrão, que é a principal atração do lar, enquanto Belô, uma avó de temperamento forte e olhos grandes, chegou de rompante no saguão, vindo direto de seu quarto, acusando uma das avós que sorviam o mate:
- Essa cuia é da Sandra! – exclamou Belô, irritada.
- A Sandra tem outra. Essa não é dela - respondeu a acusada.- É sim! – retrucou, exigindo a cuia para si.
Vendo de perto a cena, Raquel se irritou com a discussão, e advertiu as três com dureza, mesmo que a voz falhada, sequela do derrame, diminuísse a impositividade:
- Ei, não comecem brigar que eles tão gravando ali, vai ficar feio!
Mas Belô venceu a disputa na insistência e ficou com a cuia, deixando as amigas apenas com a térmica cheia de água. No fim, ninguém tomou o chimarrão.
Doralice só acompanhou a discussão de longe e, sentindo nossa falta de reação diante do episódio, se limitou a comentar brevemente, mesmo que no fundo as amigas e Belô continuassem argumentando duramente pela cuia.
- Acontece aí cada uma... mas eu fico fico feliz que vocês vieram aqui, obrigada pela visita de vocês, meu Deus do céu, eu fico agradecida! - comentou a avó.
Doralice, em todas as visitas, demonstrou ser muito grata com nossa presença
Pouco tempo depois, descobrimos que um dos motivos da irritação de Belô era fruto da ansiedade gerada pela consulta que ela faria com o dentista naquele dia. Belô, que não possuía dentes, ganharia uma dentadura, artefato que passou a ostentar sempre que a reportagem voltava ao lar. Naquele dia, talvez com peso na consciência pela ação um tanto agressiva, ela praticou a sua terapia. Se sentou no sofá, apoiou nas pernas cruzadas um dos oito cadernos escolares que carregava, e passou a preencher linhas, páginas, maços de folhas com um único risco, que iniciava junto ao traçado e subia levemente antes de retornar à base e recomeçar o trajeto, interrompido apenas no final de cada fila. Diante da cena, as amigas logo confirmaram: Belô queria ser professora.
your image
A 'Belô', uma das moradoras mais alegres do local, não esconde seu desejo de ter lecionado quando jovem